29 de abr. de 2011

Tradução - "Positivismo Feliz"

In: Mark KELLY. The Political Philosophy of Michel Foucault. Capítulo: “Epistemology”, Seção: “Happy Positivism”, p. 25-27. 

A postura de Foucault frente ao saber/linguagem/discurso equivale ao que ele chama de seu “positivismo”. Este não é obviamente um positivismo “no sentido normal da palavra” (SD 9); Foucault rejeita o positivismo nesse sentido, afirmando em As Palavras e as Coisas que o positivismo é indissociável de uma escatologia (OT 320). Ainda, o que Foucault entende ser o “sentido normal” de “positivismo” não é o que normalmente entendemos por esta palavra. Na academia anglófona, estamos acostumados a ver “positivismo” como abreviação de “positivismo lógico”, isto é, o empirismo lógico, mas o positivismo tem uma história muito maior do que este notório momento na filosofia do século vinte. A primeira filosofia a chamar a si mesma de positivista foi a escola francesa de pensamento social do século dezenove de Auguste Comte e Saint-Simon, que naturalmente era muito mais conhecida na França na metade do século vinte do que o positivismo lógico. O uso do termo “positivismo” pelos empiristas lógicos foi baseado certamente na similaridade com aquela escola anterior- o tema comum de todos os positivismos é basear a filosofia sobre um modelo de investigação encontrado na ciência natural. Como vimos, nesse sentido, Foucault claramente é positivista. Contudo, seu positivismo difere grandemente de qualquer variante anterior.
Foucault foi acusado de positivismo num artigo de 1967 no Les Temps Modernes a propósito dele intiulado “Um Positivista Desesperado” (Le Bon 1967; ver Macey 1933, 176), apenas um dos artigos deste jornal que atacavam o novo livro de Foucault, As Palavras e as Coisas. “Positivismo” é aqui contraposto ao historicismo dialético do marxismo, a posição privilegiada pelo Les Temps Modernes naquele tempo. Contra as alegações de desespero, Foucault proclamou seu “positivismo feliz” Em A Arqueologia do Saber, Foucault (AS 164-65) declara, “Se substituir  a  busca  das totalidades  pela  análise  da  raridade,  o  tema  do  fundamento transcendental pela descrição das relações de exterioridade, a busca da origem pela análise dos acúmulos, é ser positivista, pois bem, eu sou  um  positivista  feliz ,  concordo  facilmente”22.Esta
declaração que se inicia aqui como uma réplica, é transportado para o seu projeto genealógico, com Foucault (OD 72) proclamando na “Ordem do Discurso”, “o humor genealógico será aquele de um positivismo feliz”23.  Esta frase tem o óbvio aroma da “gaia ciência” de Nietzsche.
Numa conferência em 1978, Foucault descreve a “ciência positivista” como aquela que “basicamente tem confiança em si mesma, até quando se mantém cuidadosamente crítica de cada um de seus resultados” (PT 37). É exatamente ensse sentido, enxergando si mesmo como herdeiro da tradição crítica, que Foucault é ele mesmo um positivista. É do que eu acuso Derrida de ter em ultima instancia fracassado em fazer, posto que por as coisas sob rasura é precisamente não ser confiante nelas em absoluto.
Isto também faz do positivismo de Foucault o pólo oposto do positivismo lógico (cf. Turetzky 1989, 154), o positivismo lógico demanda a verificação de todos os enunciados, e recusa assentir proposições que não sejam cientificamente provadas, condenando-as como sem significado, ao passo que Foucault admite como sua primeira premissa que todas as proposições são violências contra as coisas, e que, portanto o que é necessário é coragem em face da indeterminação da linguagem face às coisas, continuando a impulsionar novos conceitos que sabemos que nunca serão em última instância inteiramente “corretos”.  O positivismo de Foucault não é contudo o pólo oposto do positivismo de Auguste Comte. Como Vincent Descombes (1980, 110) explica, “Foucault vem da escola positivista francesa, para os quais a filosofia é uma função da história dos conceitos trabalhando em várias áreas de especialização”. O positivismo de Comte era uma filosofia da história, da história das déias, que procurou o padrão da história; antes de conceber a filosofia, como o positivismo lógico fez, como um discurso metacientífico  que assegura a verdade científica, o positivismo comteano tentou fazer a própria filosofia uma disciplina científica, empírica. Foucault está na “longa tradição de filósofos franceses de Comte à Duhem, de Bachelard à Althusser” (Dreyfus 1987, xi) e Canguilhem, uma tradição de “realismo científico” (Dreyfus 1987, x), que confere um valor ao conhecimento científico natural superior àquele conferido a outros tipos de conhecimento. Esta herança em Foucault é geralmente negligenciada.
Isto parece contradizer nossa epistemologia, na noção da realidade como caótica, o que parece impossível de adequar-se a um respeito pelas descobertas científicas. Como Descombes (1980, 116) coloca, “Por um lado, a abordagem de Foucault é a de um positivista... Ainda, por outro lado, Foucault como leitor de Nietzsche não acredita na noção positivista de fato”. Descombes (1980, 117) assim afirma que o trabalho de Foucault equivale a nada mais que “um constructo sedutor, cujo jogo de referências cruzadas eruditas empresta um ar de verossimilhança”. A acusação aqui é aquela clássica do paradoxo relativista: o relativista diz que a verdade é relativa, mas então este enunciado é ele mesmo relativo – ele então não pode
ter certeza disso. O positivismo feliz foge a esta crítica, entretanto, porque afirma a necessidade de apresentar enunciados indeterminados em vista da impossibilidade da plena determinação. Não é preciso a ressalva de que ele não é como as coisas realmente são, desde que não pode haver descrição que se apegue às coisas como elas realmente são. “É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar”, como diz Foucault (EW2 380).
A clássica denúncia de Charles Taylor (1984, 162ff.) de que Foucault seria repelido pelo nietzscheanismo em fazer julgamentos de valor não faz sentido: o nietzscheanismo diz para você audaciosamente estabelecer seus próprios valores. Na medida em que a análise de Foucault é seca, e objetivista, não fazendo julgamentos, é devido precisamente à influência não-nietzscheana do cientificismo francês, combinado à influência nietzscheana de fazer um positivismo alegre: Foucault combina o objetivismo do estruturalismo francês e o positivismo com uma justificação nietzscheana à luz da compreensão dos problemas do objetivismo levantados por Nietzsche, que significa que Foucault não é nem inteiramente positivista, nem completamente nietzscheano. Numa entrevista em 1967, Foucault diz a seu entrevistador que ele foi puxado em duas direções no início de sua carreira, por um lado “a paixão por Blanchot e Bataille, e do outro lado o interesse que eu nutria por certos estudos positivos, como aqueles de Dumézil e Lévi-Strauss” (RC 98). É perfeitamente claro que o segundo interesse corresponde ao estruturalismo, e a Canguilhem, e o primeiro a Nietzsche, Foucault “leu [Nietzsche] por causa de Bataille, e Bataille por causa de Blanchot” (EW2 239).

Por [Grupo Foucault UFPE]

OBS: As citações continuam na abreviatura em língua inglesa, então OT (The Order of the Things) = As Palavras e as Coisas; SD (Society Must be Defended) = Em Defesa da Sociedade, etc.
OBS2: A forma atual da tradução é provisória, não foi revisado do ponto de vista da ortografia.

22 de abr. de 2011

Próximo encontro, dia 25/04, iniciaremos a leitura do livro "Em defesa da sociedade". A intenção, por enquanto, é ler os três primeiros capítulos. O texto em formato online se encontra na sessão de links do blog.

26 de mar. de 2011

Resumo II - "A Ordem do Discurso" (21/03/11)

Na continuação de seu livro, Foucault destaca outro princípio de coerção do discurso: o autor. Este é definido como: “princípio de agrupamento do discurso, como unidade de origem de suas significações.” Porém, nem todos os domínios vão necessitar do autor como um doador de sentido. E nos outros, os que necessitam de tal atribuição, a função do autor não atua de maneira fixa. Para isso Foucault faz um paralelo entre os discursos científicos e os literários. Enquanto a função do autor vai perdendo importância no primeiro, nos segundos, nos discursos literários, ele age de forma incomensurável.

Atualmente, chegamos a desenvolver uma espécie de bibliografilia, sentimos uma intensa necessidade de articular a vida do autor à sua obra de forma a tentar preencher as lacunas que se nos apresentam, com a esperança de que o sentido desta vida possa esclarecer a falta de sentido que encontramos dentro de um texto, ou no intervalo de vários. O autor é manuseado (pela crítica, principalmente) de forma a dar coerência e coesão a certa multiplicidade. Para isso existe uma reinvenção do autor, que em certos momentos adquire características quase fictícias.

Foucault afirma que pelo menos desde uma certa época tudo que um indivíduo produz retoma a função do autor. Mesmo que este atue de forma a tentar renovar, modificando a imagem tradicional do autor, será a partir dessa nova posição que recortará “em tudo o que poderia ter dito, em tudo o que diz todos os dias, a todo o momento, o perfil ainda trêmulo de sua obra.” Desta forma, princípio do autor atua limitando o acaso do discurso através de um “jogo de identidade”, pela individualidade e o eu.

Outro principio de limitação do acaso serão as disciplinas. Estas se definem como “uma espécie de sistema anônimo a disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem que seu sentido ou sua validade estejam ligados a quem sucedeu ser seu invento.” As disciplinas são compostas tanto de verdades quanto de erros, e esses últimos possuirão uma função positiva dentro delas. Interpretamos essa positividade na medida em que para existir a verdade deve existir o erro; e para a disciplina possuir um caráter reatualizável deve considerar as metáforas anteriores às atuais como erros.

Para que uma proposição pertença a uma disciplina precisa responder a um conjunto de condições diferentes das condições de verdade. Ela precisa utilizar-se de instrumentos, conceitos e técnicas específicas, e deve se situar em um certo horizonte teórico. A disciplina acontece, por tanto, como controladora da produção de discursos, fixando seus limites possíveis.

Um terceiro grupo de procedimentos vai aparecer com o intuito de determinar as condições do funcionamento dos discursos. Impondo regras, age como princípio de rarefação dos sujeitos que falam. Algumas regiões do discurso atuam de formas “diferenciadas e diferenciantes”: não permitindo que qualquer um entre na ordem do discurso, exigem certas qualificações para que os indivíduos adquiram o direito de falar.

A partir disso, existe um sistema de restrições, somente dentro do qual é possível a troca e a comunicação. Uma das formas desse sistema é o ritual, que “define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam” e “todo um conjunto de signos que devem acompanhar o discurso.” É aí que Foucault fala das sociedades do discurso: “cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para fazê-lo circular em um espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras estritas, sem que seus detentores sejam despossuídos por essa distribuição.” Como ilustração, o autor fala do ato de escrever. O escritor aparece como um sujeito diferenciado, seu discurso se apresenta como suficiente em si mesmo. A ‘escritura’ e a ‘criação’ existem num âmbito dissimétrico em relação a qualquer outra prática do sistema lingüístico.

As doutrinas, a princípio, são a inversão das sociedades do discurso, na medida em que nestas um número ilimitado de indivíduos definem sua pertença pela partilha de um mesmo discurso. Porém, vale atentar que a doutrina age de forma a restringir os sujeitos que falam através de um mecanismo de rejeição diante daqueles que produzem discursos inassimiláveis. E age também de forma a proibir certos enunciados, que se tornam impronunciáveis (caso não se queira negar as verdades do grupo ao qual pertence).

A partir destas definições, Foucault nos oferece uma ferramenta poderosa para criticar ou para atribuir diferentes sentidos às mais diversas instituições (como a de ensino, por exemplo) assinalando-as como maneiras políticas de manter ou de modificar “a apropriação dos discursos, com saberes e os poderes que eles trazem consigo.”

Por [Grupo Foucault UFPE]